Ele foi longe demais
Bloqueio ao X e Vaza Toga mostram que é preciso pôr um fim ao estado de exceção criado por Alexandre de Moraes
Faz uma semana que 22 milhões de brasileiros foram proibidos de acessar a rede social X. Não é apenas que a plataforma tenha sido bloqueada por ordem judicial. A sentença do ministro Alexandre de Moraes, do STF, também submeteu qualquer cidadão que a visite, usando recursos tecnológicos como uma VPN, ao risco de ser castigado com a pesada multa de 50 mil reais.
Isso vale se o propósito for bradar contra o STF no pior estilo dos trolls de internet. Vale também se o propósito for conversar, digamos, sobre física quântica, com uma rede de contatos profissionais cultivados ao longo dos anos. Ou apenas consultar a última publicação de alguma celebridade ativa no mundo digital. Todas essas atividades acontecem no X. Todas foram proscritas.
Quem defende a decisão de Alexandre de Moraes diz que a culpa é de Elon Musk, o bilionário dono do X, notoriamente simpático a populistas de direita como Donald Trump e Jair Bolsonaro. Musk desafiou a justiça brasileira negando-se não apenas a retirar de circulação conteúdos e perfis apontados como "perigosos para a democracia", mas também a nomear um representante local da plataforma, como pedem as leis nacionais. Com isso, teria tornado inevitável a medida drástica do bloqueio. Nenhum país pode deixar passar em branco o descumprimento de ordens judiciais. Se a moda pega, instala-se o caos.
O problema dessa argumentação é que ela resume um filme de longa metragem a uns poucos fotogramas. Nessa redução, perde-se de vista algo essencial: há mais de cinco anos, teve início um processo de concentração de poderes nas mãos, sim, de Alexandre de Moraes, mas com absoluto respaldo de seus colegas de toga. Nesse período, o STF teve mais de uma oportunidade para interromper a escalada, ou ao menos moderá-la. Sempre optou por legitimar as escolhas de Moraes, fazendo de conta, em alguns momentos, que o absurdo é trivial. Chegou-se agora ao ponto em que se busca normalizar a interferência nos direitos e no cotidiano de milhões de usuários do X, tratados como meras vítimas colaterais de uma guerra santa em nome da democracia. A história foi longe demais.
Cabe aqui destacar algumas passagens do filme.
Depois da eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, os ministros do STF enveredaram pelo caminho da "democracia defensiva" – assim batizada pelos alemães, que concluíram que a democracia precisa saber proteger-se de figuras que procuram sabotá-la internamente, como Hitler havia feito. Diante de um grupo político que falava em fechar o Congresso e a Corte, incentivando os militares a sair dos quartéis, o Supremo inventou mecanismos para proteger as instituições de quem estava no Palácio do Planalto.
O primeiro deles foi o inquérito das fake news, instaurado de ofício pelo ministro Dias Toffoli e entregue à relatoria de Alexandre de Moraes. Seu objetivo era apurar mentiras, ameaças e ofensas direcionadas ao STF. Na época, a procuradora-geral da República Raquel Dodge disse que o inquérito não apenas estava calcado numa interpretação heterodoxa do regimento interno do STF, mas também atropelava a lógica do sistema penal, que proíbe que o órgão que investiga seja o mesmo que julga. Os ministros rejeitaram os argumentos e mandaram Moraes seguir em frente. O inquérito já tem mais de cinco anos e é mantido em sigilo. Numa entrevista no domingo, 1º de setembro, o ministro Luís Roberto Barroso disse "achar" que o seu término está próximo, mas não se comprometeu com nenhuma data.
Outro episódio diz respeito à criação da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, AEED. A iniciativa coube ao ministro Edson Fachin, quando era presidente do Tribunal Superior Eleitoral, TSE, e a operacionalização do órgão, cujo propósito declarado é rastrear a internet em busca de notícias falsas nos períodos eleitorais, deveu-se ao ministro Barroso, quando ocupou o mesmo cargo. Mas foi Alexandre de Moraes, que comandou o TSE entre agosto de 2022 e junho de 2024, quem primeiro se valeu dessa estrutura.
Também nesse caso, a Procuradoria-Geral da República, dessa vez representada pela vice-procuradora-geral Lindôra Araújo, considerou que o órgão levava para dentro do judiciário funções de investigação, longe dos olhos do Ministério Público ou de qualquer outra instância de controle. O alerta foi novamente desprezado. Nas últimas semanas, o escândalo da Vaza Toga revelou que as inquietações da PGR eram absolutamente justificadas. Ficou demonstrado que Alexandre de Moraes não só manteve a AEED funcionando a todo vapor em 2023, muito depois de encerrado o período eleitoral, como ainda instalou uma porta giratória entre o TSE e o STF, usando o órgão policialesco para alimentar o inquérito das fake news. Mais uma vez, seus colegas fingiram que nada de estranho aconteceu.
Uma reportagem publicada pela Folha de S. Paulo nesta quarta, 4, mostra que a porta giratória também funcionou no outro sentido – e aqui retornamos ao X. Descontente com uma postagem que considerou ofensiva, Moraes pediu que seus assessores no TSE pedissem sua derrubada. A rede social os informou que, passadas as eleições, suas regras internas de moderação só autorizavam o bloqueio de conteúdos que incitassem algum crime ou acarretassem perigos concretos e imediatos no "mundo real". Moraes decidiu então que usaria o inquérito das fake news para forçar a retirada do post, ameaçando a empresa de multa caso não cedesse.
Diante da suspensão do X, o Partido Novo e a Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, entraram com contestações que foram distribuídas por sorteio ao ministro Nunes Marques. Sensatamente, ele decidiu encaminhar o assunto ao plenário, onde os onze ministros do STF terão de se manifestar. O resultado não deve ser diferente de ocasiões anteriores, segundo apurou O Antagonista: a tendência é que a ordem de Moraes seja ratificada pelos seus colegas, ainda que não por unanimidade.
Esses exemplos, que vão do nascimento do inquérito das fake news até o momento presente, revelam um padrão: transferência de poderes de polícia e acusação para o Judiciário, concentração de força nas mãos de Alexandre de Moraes, blindagem providenciada pela maioria dos ministros do STF. Essa dinâmica o Supremo e o país e precisa ser interrompida com urgência.
Uma maneira de fazê-lo seria encerrar de uma vez por todas os inquéritos direcionados ao campo político bolsonarista, encaminhar as denúncias possíveis e promover o julgamento dos acusados.
Crusoé apurou que a PF pode concluir ainda neste mês a investigação sobre o 8 de Janeiro. Agentes ouvidos pela reportagem apontam como grandes as chances de o ex-presidente ser indiciado por tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito – um dos crimes previstos no artigo 359 do Código Penal. O próprio ex-presidente já teria sido avisado disso.
Trata-se, obviamente, de um desfecho que não interessa a Bolsonaro. Por isso, neste sábado, 7 de setembro, ele seus aliados vão apontar caminhos alternativos, numa grande manifestação de rua em São Paulo.
Um deles é o impeachment de Alexandre de Moraes pelo Senado, desejo ardente da maior parte das pessoas que comparecerão ao evento. Será, no entanto, mais uma ideia (ou ameaça) pairando no ar do que algo defendido a plenos pulmões nos discursos. Faixas e cartazes com menções diretas ao ministro foram proibidas e ainda se estuda a conveniência de levar à avenida um boneco inflável gigante, batizado de "Xandão".
O mote oficial da passeata acabou sendo a defesa da liberdade de expressão e do Estado Democrático de Direito. Como num evento anterior realizado em fevereiro, também em São Paulo, haverá um apelo pela anistia aos participantes do 8 de Janeiro, como meio de pacificar o país. O próprio Bolsonaro deu o tom numa entrevista ao canal Auriverde Brasil nesta quarta, 4. “Peço a Deus que toque o coração dos 11 ministros", disse ele. "É humilhante falar em impeachment, eu sei disso. Cassar um ministro não é bom. Agora, esse ministro, por favor, abaixe um pouquinho a guarda, tire esse coração de maldade da tua frente.”
Alexandre de Moraes, no entanto, não parece disposto a entrar nesse jogo. Para marcar um contraste com a manifestação bolsonarista, Lula o convidou para o desfile oficial do Dia da Independência, em Brasília. E o ministro confirmou presença, reforçando a ideia de que não é uma figura neutra e jogando lenha na fogueira da polarização.
As coisas no Brasil ainda podem piorar muito, antes de melhorar. Se é que vão.
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