Ser amigo do rei
Quem vive em Pasárgada não tem medo de nada. Esse sentimento hoje é todo nosso, amigo leitor, nosso e só nosso
A uma certa altura de sua vida, mais precisamente em 1930, Manoel Bandeira perdeu a paciência poética com o Brasil e resolveu ir-se embora pra Pasárgada. Lá ele era amigo do Rei e teria a mulher que quisesse, na cama que escolhesse. Bom, né? Mas, além disso, Pasárgada tinha outras vantagens: contraceptivos eficientes, telefones clarividentes, prostitutas que se podem apresentar à mãe, nenhuma preocupação com dinheiro, sombra, regaço e histórias de Trancoso da Mãe d’Água. Fazia todo sentido que o poeta, cheio dos ímpetos suicidas no Brasil, apostasse na felicidade em Pasárgada. Lá ele era amigo do Rei, e convenhamos: ser amigo do Rei, se não é tudo, é muito.
Acontece que Pasárgada não é exatamente um lugar, um país, nem uma cidade ou uma província estrangeira. Não: Pasárgada é, como dizem ser o Purgatório, um estado. Não um estado político: um estado de espírito, um jeito de se estar. Um jeito bom, proporcionado – nunca nos esqueçamos disto – pela amizade do Rei. Dessa maneira, Pasárgada pode ser em qualquer lugar deste mundo, e pode, pois, muito bem ser no Brasil também. Se está em Pasárgada como se está em beatitude, em conforto, em serenidade, em destemor, quer na Zona Sul do Rio de Janeiro, quer na Zona Oeste de São Paulo, quer no Planalto Central do Brasil. Tanto pode a amizade do Rei.
Ora, há muitos brasileiros vivendo atualmente em Pasárgada. Jornalistas principalmente, mas também políticos, especialmente os dos partidos pelos quais o Rei tem a mais dileta das amizades e a mais fraterna das compreensões. Vivendo fora, ainda que cá dentro, esses exilados ou expatriados podem fazer coisas que os de cá não podemos; têm outorgas que os de cá não temos; e não estão sujeitos às sanções a que os de cá estamos.
Assim, quem está em Pasárgada tem, por exemplo, livre acesso a redes sociais proibidas a quem vive aqui. Os lá de Pasárgada as acessam, consultam e abastecem com os acontecimentos dessas redes os jornais e portais de notícias onde trabalham, evitando assim que seus veículos paguem multas pela violação do bloqueio. Graças a esses correspondentes é que ficamos sabendo das coisas que Elon Musk publica na sua rede X, ora proibidíssima ao seu e ao meu acesso, caro leitor, e das coisas que os nossos extremistas de direita (há direita que não seja extremista?, pergunto eu, retoricamente), os nossos subversivos e antidemocratas, e os nossos poucos revoltosos também publicam lá na mesma rede X. Por isso vemos nos jornais e portais de notícias notas como esta: “Conforme relata nosso correspondente Fulano, de Pasárgada, o bilionário subversivo e antidemocrático voltou a dizer em seu perfil que...”.
Da mesma forma, os Pasargadenhos, ou Pasargadistas, sei lá, ajudam seus amigos daqui, publicando em seu nome nas redes proibidas. “Isto foi publicado pela minha amiga Sicrana, que atualmente vive e trabalha em Pasárgada”, informa o político Beltrano. Ou “Tudo aqui vai ser postado pelo primo de um amigo de um tio da minha avó, que mora em Pasárgada desde 1974 e nunca saiu de lá”, avisa o ministro Joãozinho. Coisas assim. Benditos Pasargadanos. Quebram um galhão.
É verdade que o Rei tem uns amigos mais, como direi?, do peito, que publicam nas redes proibidas eles mesmos, de cara (ao menos a cara) limpa, sem pedir a mãozinha dos Pasargadeiros. Entre esses muitos amigos contam-se tribunais inteiros, órgãos públicos democratiquérrimos, jornais, redes de televisão e os supramencionados (um pouquinho de juridiquês vai bem) partidos políticos queridos. A esses, mais até do que aos Pasargadores, nada assombra, nenhum receio arrelia: o Rei os poupa do sentimento do medo.
Esse sentimento hoje é todo nosso, amigo leitor, nosso e só nosso. Também... quem mandou a gente não ir-se embora pra Pasárgada?
Orlando Tosetto Jr. é escritor
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