O X não tem a cara de Elon Musk
Ao contrário do que diz a torcida de Alexandre de Moraes na imprensa, a rede social antes conhecida como Twitter não é a casa do ódio fascista
Frankito, o Curioso – apelido do engenheiro têxtil e checador de dados Franklin Weise – apresenta-se como o “ranheta dos infográficos”. Corrige erros (e algumas malandragens) em tabelas, planilhas e gráficos divulgados pela imprensa e pela propaganda de governos e políticos de todas as colorações ideológicas.
The Cultural Tutor publica longos fios ilustrados sobre história e arte, com temas que vão da evolução do uso do concreto na arquitetura moderna à importância da cidade belga de Bruges para o desenvolvimento das instituições financeiras da Europa.
Ahmed Fouad Alkhatib, que já citei nesta coluna antes, é um palestino que perdeu dezenas de parentes na guerra em Gaza, mas segue devotado ao diálogo com israelenses, em busca da elusiva solução de dois Estados. Crítico incisivo da política de terra arrasada com que as forças armadas de Israel vêm conduzindo a guerra, ele denuncia os crimes do Hamas com igual rigor.
Esses são três perfis dentre os pouco mais de trinta que eu seguia na rede social agora proibida no Brasil. Não chegavam a ser fundamentais para minha dieta de informação – que segue dependente da palavra impressa –, mas ocupavam uma modesta parte da minha semana, uma parte da qual sinto falta.
Já fui muito ativo no Facebook, mas era praticamente um neófito no site banido. Abri minha conta na rede quando ela ainda se chamava Twitter, mas só comecei a utilizá-la regularmente pouco antes de Elon Musk rebatizá-la de X. Embora não tenha condições de avaliar o quanto as coisas mudaram por lá, não simpatizo com a nova gerência. Pois Musk é um guerreiro cultural vulgar, que prefere o meme ao argumento. Seu propalado compromisso com a liberdade de expressão é vazio, como comprova sua aquiescência à censura que os governos da Turquia e da Índia exercem sobre o X.
O X que conheci tinha pouco a ver com seu belicoso dono. Os três perfis que citei acima, por exemplo, nada dizem sobre fascismo ou antifascismo, woke ou antiwoke. Ao contrário do que sugerem os defensores da proibição, o X não tem a cara de seu proprietário – pelo menos, não para os usuários que não vão com a cara de Musk.
Apoiadores de Moraes na imprensa e no meio político falam da rede como se ela fosse a destilaria na qual a extrema direita refina as variedades mais inflamáveis de seu discurso de ódio. Afirmam até que as eleições municipais serão mais civilizadas agora que o STF desativou o “algoritmo do ódio” (juro que ouvi essa expressão, mas não lembro mais de que comentarista).
É verdade que a rede de Musk (como também a de seu concorrente, Mark Zuckerberg) abriga variedades extremas da direita. E também da esquerda: os neofascistas estão a alguns tuítes de distância dos neostalinistas. Nenhum desses grupos, porém, dá o tom da rede, que é variado em seu caos, por mais que Musk se esforce para atrair só um tipo de maluco.
Os tais algoritmos tendem, sim, a reforçar o viés ideológico de cada um. Os fanáticos são conduzidos à companhia daqueles que compartilham de suas convicções, especialmente daquelas que são facilmente refutadas pelos fatos. Mas essas bolhas de instransigência podem se tornar ainda mais difíceis de penetrar em outros ambientes virtuais. Há estudos indicando que expulsar os radicais das redes mais populares serve só para exilá-los em sites extremistas onde eles jamais vão se confrontar com argumentos dissidentes (falei a respeito disso em “A censura é o combustível do extremismo”).
Alguém dirá que nada disso vem ao caso: se a lei brasileira manda que a empresa constitua sede no país, está correto o ministro em suspender suas atividades. Mas o fechamento do escritório local do X veio de uma escalada de enfrentamentos entre o xerife Moraes e o bandoleiro Musk. Uma reportagem recente da Folha de S. Paulo, com base em mensagens trocadas entre auxiliares de Moraes, permite vislumbrar a dissonância entre os critérios de moderação de conteúdo aplicados pelo X e as restrições férreas que o ministro do STF desejava impor. Moraes encerrou o embate com o que Carlos Graieb definiu como “uma chave de braço no X”. A democracia que ele professa defender se afirma pela coerção, não pela convicção em valores como liberdade ou tolerância. E assim milhões de brasileiros – de esquerda e de direita, doidos e sensatos, radicais e moderados – viram-se privados de uma ferramenta que, para o bem e para o mal, ganhou inescapável importância nos debates contemporâneos.
A Horda Canarinha dispensa o X para promover a manifestação do 7 de setembro. Saiu energizada por mais um lance de seu arqui-inimigo. Eu, em compensação, fiquei sem Frankito, o Curioso, sem The Cultural Tutor, sem Ahmed Fouad Alkhatib.
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Em 2016, quando era ministro da Justiça, Moraes foi ao Paraguai acompanhar uma operação policial e se deixou filmar cortando pés de maconha. Não interessa aqui a discussão sobre drogas, sua legalização ou proibição, mas sim o teatrinho armado em meio à plantação de cannabis. O executor de braço forte e facão em punho, pronto para cortar plantas e para derrubar redes: Alexandre de Moraes está inteiro nessa pose. A performance paraguaia enaltece seu estilo voluntarista, sintetiza sua concepção de justiça, prefigura seus intermináveis inquéritos no STF.
A última coisa que postei no X, horas antes de tirarem a rede do ar, foi a imagem de Moraes ceifando pés de maconha. Ninguém chegou a ver.
Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor
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