O STF e o direito de desobediência
Apenas a divergência e o debate livre são capazes de devolver legitimidade à Justiça e resolver a questão da ilegalidade ou não do inquérito das fake news
Thomas Hobbes (1588-1679), pai do Leviatã, figura bíblica emprestada para designar o Estado, previu que cada cidadão, uma vez signatário do pacto social que dá origem à comunidade política, nunca mais pode dela se desatar, devendo-lhe prestar obediência absoluta. A única exceção ocorre quando o governante condena algum súdito à morte. Nesse caso, o objeto que baseou o surgimento do Estado, numa relação de troca de obediência pela segurança da vida, desaparece. Sob ameaça, o indivíduo pode fazer o que puder para salvar sua própria existência.
Escrevendo em tempos mais amenos – Hobbes viveu num período de guerra civil, o que explica sua obsessão com a concentração de autoridade e foco na segurança –, John Locke (1632-1704), outro autor contratualista, amplia as possibilidades de rompimento do pacto social porque os direitos à vida, à propriedade e à liberdade são compreendidos como naturais e inatos. Se o poder se torna despótico e atenta contra esses elementos fundamentais, o cidadão não apenas tem o direito como também o dever de resistir.
A ideia de direito de resistência chegou ao direito brasileiro e serve como tese inclusive para desobedecer a uma decisão judicial considerada ilegal. Em um habeas corpus (que foi negado), o próprio STF, em 1986, admitiu que “ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal ou a ela se submeter”.
Tudo esse caminho histórico para chegar ao embate STF contra a rede social X.
Para começar, evite personificar o tema, tratando-o como uma briga de Elon Musk contra Alexandre de Moraes. Isso só serve para caricaturar um debate que envolve coisas muito mais sérias, ligadas à própria razão de existir da comunidade política, como se viu.
O que precisa verdadeiramente ser debatido é se a recusa do X de cumprir decisões de cancelamento de perfis (a ausência de representante legal no país é só consequência) caracteriza um direito de resistência e, por tabela, entender se as decisões de Moraes, que têm sido referendadas pelo STF por absoluta aclamação, são ilegais ou não.
A pior maneira de fazer esse debate é esfregar na cara de alguém que o STF tem previsão legal para fazer o que quiser, como se a legitimidade de um tribunal se baseasse exclusivamente na letra escrita. Isso pode até valer para um juiz de primeira instância, com pouca margem de interpretação. No caso dos ministros, se não tiver algo escrito, ele pode ser inventado como exercício de interpretação.
Quero dizer que é bobo justificar o que fez um ministro pela existência ou não de um artigo pois os magistrados, pelo uso da liberdade de interpretação, subverteram isso há muito tempo. Com poderes quase ilimitados, todo julgamento é político e discricionário, sendo possível questionar a legitimidade – conceito mais amplo do que legalidade – das decisões.
O problema de aceitação do modus operandis de Moraes (e do silêncio dos seus colegas) no caso do inquérito das fake news, hoje afeta até extratos moderados para opinião pública. Todos querem saber se os crimes atribuídos aos réus cancelados das redes sociais existiram, se eles tiveram condições de se defender, se houve capacidade efetiva de recorrer da sentença, se os julgamentos ocorreram com imparcialidade e, depois disso tudo, se houve condenações e as penas foram proporcionais.
Em política, aprende-se a julgar um sujeito pelos resultados das suas ações e não pelas suas intenções. Se o STF acha que está salvando a democracia e repelindo os radicais, não importa. O que é fundamental são as consequências da sua atuação e elas correspondem, hoje, a uma rede social suspensa no meio de uma eleição, cidadãos comuns impedidos de acessá-la por qualquer meio, veículos de comunicação morrendo de medo de punição, cobrindo o X por meio de “correspondentes no exterior” e protestos virulentos pelo país.
O radicalismo só cresce. Enquanto Moraes estiver assistindo ao desfile da Independência ao lado de Lula, a Avenida Paulista estará interditada por uma manifestação gigantesca contra o STF. Que raio de processo pacificação é esse?
Mesmo com apelos vindos de todos os lados – de ex-ministros, OAB, políticos, governos estrangeiros, jornalistas e cidadãos –, o STF continua apostando em um argumento de força, explícito na recusa de não discutir o assunto.
Os ministros temem que a falta de unidade seja interpretada como fraqueza, mas é o contrário. Apenas a divergência e o debate livre são capazes de devolver legitimidade à Justiça e resolver a questão da ilegalidade ou não do processo. Não se trata de buscar aceitação do público, mas de quebrar o pacto hobbesiano feito entre os ministros em torno de Moraes para que, por meio de um julgamento profundo, com maioria e minoria, se comece a desconstruir o comando à desobediência civil que muito gente brada por aí.
Leonardo Barreto é cientista político e sócio da I3P Risco Político
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